segunda-feira, setembro 4

As mentiras dos outros

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Em todas as amizades, mesmo nas boas e antigas, ocorrem por vezes momentos em que uma observação inesperada ou uma ideia que fere a sensibilidade resultam em frieza, e se não nos acautelamos começa aí a brecha por onde entra o fingimento.
Connosco raramente é esse o caso, pois pela diferença de idade e o facto de o conhecer desde miúdo, desempenho para ele o papel do pai que lhe faltou, e nas  ocasiões mais delicadas o de benévolo padre confessor, pronto a compreender e  perdoar.
As tontarias eram de pouca dura, só uma ou outra durava meses, ele logo a esfalfar-se na conquista seguinte, certo de que desta vez seria finalmente o grande amor. Nunca era. A mulher ia aguentando, fingia de cega, mas quando recebeu a herança da madrinha no mesmo dia fez-lhe a mala, e que voltasse para donde vinha, depois lhe diria quando podia levar o resto.
Foi isso vai em seis anos, e desde então nem vistos nem conhecidos, nunca mais se falaram. Os filhos também não são o que se chama uma ponte, de modo que  os laços familiares se tornaram tão frouxos que hesita na idade dos netos, só tem a certeza de que são crescidos.
Estamos a terminar o almoço para que ele me convidou, a empregada traz-nos o café, recuso o conhaque, e com alguma surpresa vejo-o a beber o seu com uma pressa de alcoólico, vício que lhe desconheço.
Seca os lábios no guardanapo, abana umas quantas vezes a cabeça, depois ainda aponta o copo, a pedir um segundo, mas arrepende-se e acena que não, a empregada sorri.
- Então?- pergunto eu – Qual é o problema?
À medida que vai desfiando o relato noto nele uma certa decepção, talvez porque esperasse ver-me mais interessado e mais do seu lado, em vez do modo neutro com que disfarço a minha surpresa.
Acontece que Luísa, a ex, que ele nem de longe imaginava fosse dada às letras, tinha  escrito as suas memórias. A obra terminada, pedira ao filho que lesse o manuscrito e este, assustado, achou melhor mostrá-lo ao pai antes do texto ir para o editor. Conta ele agora que leu, tomado de uma fúria assassina e mal se  podendo conter ao ver-se ali retratado.
Como não adianta rasgar as folhas -  “a grandessíssima p… tem tudo no computador” - que lhe diga agora o que há-de fazer. E corrigindo: que faria eu se fosse comigo?
- Não fazia nada. Deixava andar.
- Mas ela só lá pôs mentiras!
- E daí?
Ontem mandou-me um mail com o endereço do seu blogue e um grito: "Pus lá tudo! Vá ler!"
Não vou, não me interessa. Ele também só lá deve ter posto mentiras. As suas.
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Publicado na DOMINGO CM